quarta-feira, 23 de março de 2016

Masaccio: O Prelúdio do Renascimento


Para entender o pioneirismo da arte de Masaccio

Apenas vinte e seis anos. Nascido a 21 de dezembro de 1402 em Castel San Giovanni di Altura, na região do que é hoje Arezzo, na Toscana e morto em circunstâncias jamais esclarecidas no verão de 1428 em Roma, Tommaso di Ser Giovanni di Simone foi um meteoro que riscou os céus na cena inicial do Quattrocento Italiano.
Ele influenciou praticamente todos os artistas posteriores que sedimentaram de vez o movimento artístico que atingiu conquistas estéticas e culturais astronômicas num período que ficou conhecido como Renascimento.
Masaccio, apelido abrutalhado para Maso, um diminutivo de Tommaso, deve sua lenda à perspicácia do grande historiador de arte renascentista e também pintor Giorgio Vasari (1511-1574) que outorgou a ele seu crédito ímpar na grande constelação de homens brilhantes surgidos naquele momento.
Tudo que diz respeito a Masaccio está envolto em mistério. Não sabemos ao certo onde ele estudou e por quais razões muitas de suas obras não foram completadas. Sabe-se que Filippino Lippi terminou parte dos trabalhos iniciados por Masaccio, muitos deles em parceria com Masolino, outro grande artista reconhecido da época, protetor e parceiro de Tommaso em vários afrescos comissionados pelos mecenas florentinos.
O aprendizado de um pintor naquele tempo era feito geralmente nos ateliês de artistas já consagrados e para isso o aspirante deveria ingressar numa oficina perto dos doze anos de idade. Para que isso acontecesse Masaccio deveria ter partido ainda criança para Florença, o grande centro de arte na época, mas documentos provam que a primeira menção oficial à sua presença na cidade consta de um guia de pintores de 1422, onde ele então se inscrevera já como um artista independente.
Os primeiros trabalhos atribuídos a ele são o 'Tríptico de São Juvenal', de 1422, hoje no museu de Cascia di Regello, próximo a Florença e 'A Virgem com o Menino e Santa Ana', de 1424, atualmente na Galeria Uffizi.
O quê em especial apreciar na arte de Masaccio? O quê necessariamente torna Masaccio um precursor da grande arte alcançada no período do Renascimento?
Antes de mais nada suas preocupações com a perspectiva e a descoberta de um ponto de fuga, assim como a caracterização de cada personagem como uma figura original sem precedentes. Essas questões já tomavam vulto e espaço nos afrescos de Giotto (1266-1337), de quem Masaccio foi grande admirador e cuja arte pôde conhecer de perto em Florença, dando desta forma continuidade às propostas estéticas levantadas por aquele artista. 
Conseguiu surpreender seus contemporâneos pelas ousadas soluções que encontrou, tanto em perspectiva quanto em caracterização. A proximidade com a arquitetura de Brunelleschi e a escultura de Donatello, assim como a amizade com esses dois artistas, influenciaria também a estética inusitada nos afrescos de Masaccio. Ele antecipou também o uso do chiaroscuro (efeitos de luz e sombra), tão querido por Leonardo da Vinci (1452-1519), e distribuiu o espaço pictórico em seus afrescos e pinturas como ninguém até então o fizera. Michelangelo foi um grande estudioso da obra de Masaccio, algumas de suas pinturas que infelizmente não sobreviveram ao tempo ou acidentes de percurso, só chegaram até nós graças aos estudos e cópias que Buonarroti fez delas, estes felizmente preservados.


O 'Tríptico de São Juvenal' de 1422 apresenta a figura central da Virgem com o Menino ainda caracterizada com os ideais góticos de beleza. Mas a maneira com que ela apresenta seu filho, sustentando-o numa posição mais de alerta que de aconchego, prenuncia de certo modo o destino redentor de sua missão como o salvador dos homens. A criança, no entanto, mantém o gesto inocente de levar o dedo à boca como se de nada soubesse do papel que lhe caberia. 
As auréolas que as duas figuras centrais apresentam, ainda se mostram como nos ícones bizantinos e medievais, configuração que Masaccio abandonará muito em breve nos seus afrescos, assim como nos dois anjos que se encontram diante do trono da Virgem em estado de declarada e ativa adoração, porém numa posição completamente inovadora, totalmente de costas para o observador, com rostos quase invisíveis que lembram mais as figuras de uma tela impressionista que de um pintor do Quattrocento. 
Eles têm nos seus trajes um rico efeito no drapeado, uma das preocupações de Masaccio, algo que nem mesmo as pinturas etéreas de Fra Angélico (1387-1455) conseguiriam reproduzir. Provavelmente o panejamento do manto da Virgem também apresentasse um efeito semelhante mas isso se perdeu com o tempo. Os anjos possuem, além do mais, asas multicoloridas, o que enriquece a pintura de tema sóbrio, equilibrando-a assim através de dois elementos sutis de pura vivacidade e leveza.
O trono da Virgem, suporte de todo o cenário, é estudado e apresentado aqui numa perspectiva que, ainda que falha no enfoque do degrau, surge como a fundação, verdadeiro e poderoso alicerce do tema telúrico no papel de Maria em relação a seu Filho, apresentado aqui como uma alegoria de salvação, a imaculada criança que purificará a humanidade e que a mãe parece equilibrar em sua mão, num gesto quase que de mimo aos anjos e aos espectadores, na mesma posição que estes: de frente para o mistério.


Dois anos depois Masaccio pinta a Virgem com o Menino e Anjos para a igreja de Santa Maria dos Carmelitas em Pisa. E novamente observamos aqui o sentido de profundidade, captado tanto na forma magistral da perspectiva com que o trono da Virgem é apresentado quanto na sobreposição dos anjos situados à frente e ao fundo dele. A pintura fazia parte de um conjunto situado atrás do altar da igreja e que foi desmantelado aos poucos.
Mas aqui a batalha estética de Masaccio continua, ainda que de forma silenciosa. A Virgem apresenta desta vez um ideal calcado em bases clássicas, fonte principal da qual o Renascimento ressacralizou sua ordem. Ela tem dimensões muito maiores que todas as outras figuras na cena e novamente centraliza toda a ação. O drapeado no panejamento soberbo do manto da Virgem salienta as formas de seu corpo que protege, ampara e alimenta seu filho. Uvas, numa clara alusão à eucaristia, são oferecidas à criança que desta vez se entretém em saboreá-las, deixando entrever pela expressão das sobrancelhas que talvez até mesmo estivessem um pouco azedas. Masaccio não perde a piada!



Um detalhe nos chama a atenção: a proporção do corpo de Jesus, muito mais próximo da estrutura do corpo de uma verdadeira criança preferencialmente à apresentação da dimensão física de um adulto em termos reduzidos, como era de uso até então. Aqui a cabeça maior atesta esse detalhe. E a expressão do rosto, muito mais próxima do semblante de um homem velho ganha aqui um ponto de destaque. Há nesse detalhe um símbolo sutil da sabedoria ancestral contida nesse pequeno menino, assim como à sua auréola desenhada em perspectiva.
A maneira como os alaúdes dos anjos músicos são apresentados, numa perspectiva inconcebível até então, ressalta ainda mais o sentido de profundidade das duas figuras que parecem sentadas na própria moldura do nicho.



O Dinheiro do Tributo

Retrocedendo um ano, em 1425 encontramos Masaccio pintando os afrescos da Capela Brancacci, comissionado pelo rico mecenas Felice Brancacci na igreja de Santa Maria dos Carmelitas em Florença. Aqui ele contou com a parceria de Masolino para o trabalho, fazendo valer o epíteto 'a dupla precisa e notável', como eram conhecidos. Por motivos jamais esclarecidos o trabalho foi deixado inacabado e é uma das obras que, como mencionamos acima, foi finalizada por Filippino Lippi cinquenta e cinco anos depois, em 1480. Falta de recursos? Jamais saberemos.
O fato é que o tema da pintura é polêmico, já que trata do pagamento do 'pedágio' exigido pelo cobrador de impostos, vestido aqui como um cidadão romano. A cena faz alusão ao Evangelho de Mateus 17, 24-27. Sendo cobrado pelo tributo em Cafarnaum, Jesus ordena a Pedro que vá até o mar e retire da boca do primeiro peixe pescado a moeda para o pagamento da taxa.
Essa é a primeira pintura de que se tem notícia a apresentar, na construção que se vê à direita do afresco, uma perspectiva nos padrões que seriam a partir dali adotados como regra. A obra é inovadora em vários sentidos. A caracterização personalizada dos personagens, antes delineada por Giotto, ganha aqui uma qualidade e afirmação sem precedentes. Todos os doze apóstolos têm diferentes expressões no rosto. O momento é crucial. Jesus está apontando o caminho do mar a Pedro. Todos se questionam, têm diferentes reações e o gesto do incrédulo Pedro chega a ser cômico: 'No mar?'
Apenas Cristo, o ponto de fuga da pintura, mantém uma aparência serena e calma. Ele sabe e conhece o desfecho de tudo. Sob um ponto de vista estético ressaltam-se na obra a utilização do chiaroscuro e o volume conseguido nas figuras pelo puro uso da cor, sem a necessidade de delineá-las. O trabalho deve sua influência em grande parte a Giotto no sentido da expressividade e massa do corpo de cada um desses homens. Os pés são pintados à exaustão da perfeição, conseguindo um efeito retumbante de solidez na forma como eles se sustentam no espaço pictórico. E aqui Masaccio já apresenta as auréolas em forma elíptica, travessura a que se permitirá logo depois ao caracterizar a divindade do menino Jesus na sóbria pintura para o altar da Virgem com Menino e Anjos da igreja de Santa Maria dos Carmelitas em Pisa e que analisamos anteriormente.
Outro destaque notável é a representação das sombras dos corpos no chão, algo incomum naquele período, bem como a localização de um foco de luz vindo da parte direita da cena, dividida aqui como em muitas outras pinturas do período que a antecede, mostrando assim várias cenas de uma mesma história acontecendo num mesmo espaço pictórico. Na cena central temos Cristo, os apóstolos e o cobrador de impostos. Ao fundo, à esquerda, Pedro retira a moeda da boca do peixe, tendo o cuidado de retirar seu manto para executar a tarefa. E próximo à construção, finalmente o tributo é pago por Pedro.
O resgate dos ideais do helenismo são apresentados aqui também na forma em que alguns personagens se apoiam sob uma das pernas, principalmente na figura do cobrador de impostos no conhecido contrapposto, criado pela graciosidade da arte grega e do qual o Renascimento fará uso em larga escala, acentuando assim a forma natural e casual de representação da forma humana sem a rigidez estática e cristalizada da estética medieval que apresentava o homem muitas vezes como um autômato.
Para o belo rosto do apóstolo João, Masaccio pintará um jovem que lembra mais a face de um deus Apolo, com traços nitidamente gregos e cabelos encaracolados que nos remetem incondicionalmente às esculturas helênicas do Período Clássico.
Mas é na anônima figura do cobrador de impostos ao centro que uma revelação acontece. O ângulo sob o qual o artista pinta a mão esquerda deste homem é de uma originalidade sem precedentes, assim como o jogo de luz sobre o corpo e os pés, de uma sutileza admirável. E o contrapposto, em primeiro plano, aqui contraposto à figura do próprio Cristo, resgata todo um passado glorioso ao mesmo tempo que aponta um futuro não menos denso, pleno de vitórias e de conquistas!