Para
entender o pioneirismo da arte de Masaccio
Apenas
vinte e seis anos. Nascido a 21 de dezembro de 1402 em Castel
San Giovanni di Altura, na
região do que é hoje Arezzo, na
Toscana
e morto
em circunstâncias jamais esclarecidas no verão de 1428 em Roma,
Tommaso
di Ser Giovanni di Simone foi um meteoro que
riscou os céus na
cena inicial do Quattrocento Italiano.
Ele
influenciou
praticamente todos os artistas posteriores que sedimentaram de vez o
movimento artístico
que atingiu
conquistas estéticas e culturais astronômicas
num
período que ficou conhecido como Renascimento.
Masaccio, apelido abrutalhado para Maso, um diminutivo de Tommaso, deve sua
lenda à perspicácia do grande historiador de arte renascentista e
também pintor Giorgio Vasari
(1511-1574)
que outorgou a ele seu crédito ímpar na grande constelação de
homens brilhantes surgidos naquele momento.
Tudo
que diz respeito a Masaccio está envolto em mistério. Não sabemos
ao certo onde ele estudou e por quais
razões muitas de suas obras não foram completadas. Sabe-se que
Filippino Lippi terminou parte dos trabalhos iniciados por Masaccio,
muitos deles em parceria com Masolino, outro grande
artista
reconhecido
da época, protetor
e parceiro
de Tommaso em vários afrescos comissionados pelos mecenas
florentinos.
O
aprendizado de um pintor naquele tempo era feito geralmente nos
ateliês de artistas
já consagrados e para isso o aspirante
deveria ingressar numa
oficina perto
dos
doze anos de
idade.
Para que
isso
acontecesse
Masaccio deveria ter partido ainda criança para Florença, o grande centro de arte na época,
mas documentos provam que a primeira menção oficial à sua
presença
na cidade consta de
um
guia de pintores de
1422, onde
ele então se inscrevera
já
como um artista independente.
Os
primeiros trabalhos atribuídos a ele são o 'Tríptico
de São Juvenal',
de 1422, hoje no museu de Cascia di Regello, próximo a Florença e
'A
Virgem com o Menino e Santa Ana',
de 1424, atualmente na Galeria Uffizi.
O
quê em
especial apreciar
na arte de Masaccio? O quê necessariamente
torna
Masaccio um precursor da grande arte alcançada no período do
Renascimento?
Antes
de mais nada suas preocupações com a perspectiva e a descoberta de
um ponto de fuga, assim como a caracterização de cada personagem
como uma figura original sem precedentes. Essas
questões já tomavam vulto e
espaço nos
afrescos de Giotto (1266-1337),
de
quem Masaccio
foi grande admirador e
cuja
arte pôde conhecer de
perto em
Florença,
dando
desta
forma continuidade
às
propostas
estéticas
levantadas
por aquele
artista.
Conseguiu
surpreender seus contemporâneos pelas
ousadas soluções que encontrou, tanto em perspectiva quanto em
caracterização.
A
proximidade com a arquitetura de Brunelleschi e a escultura de
Donatello,
assim
como a amizade com esses dois
artistas,
influenciaria também a estética inusitada nos
afrescos de Masaccio. Ele
antecipou também o uso do chiaroscuro (efeitos de luz e sombra), tão
querido por Leonardo da Vinci (1452-1519),
e distribuiu o espaço pictórico em seus afrescos e
pinturas como
ninguém até então o fizera. Michelangelo
foi um grande estudioso da obra de Masaccio, algumas de suas pinturas que infelizmente não sobreviveram ao tempo ou acidentes de percurso, só chegaram até nós graças aos estudos e cópias que Buonarroti fez delas, estes felizmente preservados.
O
'Tríptico
de São Juvenal'
de
1422 apresenta a figura central da Virgem com o Menino ainda
caracterizada com os ideais góticos de beleza. Mas
a maneira com que
ela apresenta seu filho, sustentando-o numa posição mais de alerta
que de aconchego, prenuncia de certo modo o destino redentor de sua
missão como o
salvador
dos homens. A criança, no entanto, mantém o gesto inocente de levar
o dedo à boca como se de nada soubesse do papel que lhe caberia.
As
auréolas que as duas figuras centrais apresentam, ainda se mostram
como nos ícones bizantinos e medievais, configuração que Masaccio
abandonará muito em breve nos seus afrescos, assim
como nos
dois anjos que se encontram diante do trono da Virgem em
estado de declarada e ativa adoração,
porém
numa
posição completamente inovadora, totalmente de costas para o
observador, com
rostos quase invisíveis que lembram mais as figuras de uma tela
impressionista que de um pintor do Quattrocento.
Eles
têm nos seus trajes um rico efeito no drapeado, uma
das preocupações de Masaccio, algo
que nem mesmo as pinturas etéreas de Fra Angélico (1387-1455)
conseguiriam reproduzir.
Provavelmente o panejamento do manto da Virgem também apresentasse
um efeito semelhante mas isso se perdeu com o tempo. Os
anjos possuem, além
do mais, asas
multicoloridas, o que
enriquece a
pintura de
tema
sóbrio,
equilibrando-a
assim através de
dois elementos sutis de pura
vivacidade
e leveza.
O
trono da Virgem, suporte de todo o cenário, é estudado e
apresentado aqui numa
perspectiva que, ainda que falha no
enfoque do degrau,
surge
como
a
fundação,
verdadeiro
e
poderoso
alicerce
do
tema
telúrico
no
papel de Maria em
relação a
seu
Filho, apresentado aqui como uma alegoria de salvação, a
imaculada criança que purificará a humanidade e
que a mãe parece equilibrar em sua mão, num gesto quase que de mimo
aos anjos e aos espectadores, na mesma posição que estes: de frente
para o mistério.
Dois
anos depois Masaccio pinta a Virgem
com o Menino e Anjos para a igreja de Santa Maria dos
Carmelitas
em Pisa. E novamente observamos aqui
o
sentido de profundidade, captado tanto na forma magistral da
perspectiva com que o trono da Virgem é apresentado quanto na
sobreposição dos anjos situados à frente e ao fundo dele. A
pintura fazia parte de um conjunto situado atrás do altar da igreja
e que
foi
desmantelado aos poucos.
Mas
aqui
a
batalha estética de Masaccio continua, ainda que de forma
silenciosa. A Virgem apresenta desta vez um ideal calcado em bases
clássicas, fonte principal
da
qual o Renascimento ressacralizou
sua ordem. Ela tem dimensões muito maiores que todas as outras
figuras na cena e novamente centraliza toda a ação. O
drapeado no panejamento soberbo do manto da Virgem salienta as formas
de seu corpo que protege, ampara e alimenta seu filho. Uvas,
numa clara alusão à eucaristia, são oferecidas à criança que
desta vez se entretém em saboreá-las, deixando entrever pela
expressão das sobrancelhas que talvez até
mesmo estivessem
um pouco azedas. Masaccio não perde a piada!
Um
detalhe nos chama a atenção: a proporção do corpo de Jesus, muito
mais próximo da estrutura do corpo de uma verdadeira criança
preferencialmente à apresentação da dimensão física de um adulto
em termos reduzidos, como era de uso até então. Aqui a cabeça
maior atesta esse detalhe. E a expressão do rosto, muito mais
próxima do semblante de um homem velho ganha aqui um ponto de
destaque. Há nesse detalhe um símbolo sutil da sabedoria ancestral
contida nesse pequeno menino, assim
como à sua auréola desenhada em perspectiva.
A
maneira como os alaúdes dos anjos músicos são apresentados, numa
perspectiva inconcebível até então, ressalta ainda mais o sentido
de profundidade das duas figuras que parecem sentadas
na própria
moldura
do nicho.
O
Dinheiro do Tributo
Retrocedendo
um ano, em 1425 encontramos Masaccio pintando os afrescos da Capela
Brancacci, comissionado pelo rico mecenas Felice Brancacci na igreja
de Santa Maria dos Carmelitas em Florença. Aqui ele contou com a
parceria de Masolino para o trabalho, fazendo valer o epíteto 'a
dupla precisa e notável', como eram conhecidos. Por motivos
jamais esclarecidos o trabalho foi deixado inacabado e é uma das
obras que, como mencionamos acima, foi finalizada por Filippino Lippi
cinquenta e cinco anos depois, em 1480. Falta de recursos? Jamais
saberemos.
O
fato é que o tema da pintura é polêmico, já que trata do
pagamento do 'pedágio' exigido pelo cobrador de impostos, vestido
aqui como um cidadão romano. A cena faz alusão ao Evangelho de
Mateus 17, 24-27. Sendo cobrado pelo tributo em Cafarnaum, Jesus
ordena a Pedro que vá até o mar e retire da boca do primeiro peixe
pescado a moeda para o pagamento da taxa.
Essa
é a primeira pintura de que se tem notícia a apresentar, na
construção que se vê à direita do afresco, uma perspectiva nos padrões que
seriam a partir dali adotados como regra. A obra é inovadora em vários
sentidos. A caracterização personalizada dos personagens, antes delineada por
Giotto, ganha aqui uma qualidade e afirmação sem precedentes. Todos os doze
apóstolos têm diferentes expressões no rosto. O momento é
crucial. Jesus está apontando o caminho do mar a Pedro. Todos se
questionam, têm diferentes reações e o gesto do incrédulo Pedro
chega a ser cômico: 'No mar?'
Apenas
Cristo, o ponto de fuga da pintura, mantém uma aparência serena e calma. Ele sabe e conhece o
desfecho de tudo. Sob um ponto de vista estético ressaltam-se na
obra a utilização do chiaroscuro e o volume conseguido nas
figuras pelo puro uso da cor, sem a necessidade de delineá-las. O trabalho deve sua
influência em grande parte a Giotto no sentido da expressividade e
massa do corpo de cada um desses homens. Os pés são pintados à
exaustão da perfeição, conseguindo um efeito retumbante de solidez
na forma como eles se sustentam no espaço pictórico. E aqui
Masaccio já apresenta as auréolas em forma elíptica, travessura a
que se permitirá logo depois ao caracterizar a divindade do menino
Jesus na sóbria pintura para o altar da Virgem com Menino e Anjos da
igreja de Santa Maria dos Carmelitas em Pisa e que analisamos
anteriormente.
Outro
destaque notável é a representação das sombras dos corpos no
chão, algo incomum naquele período, bem como a localização de
um foco de luz vindo da parte direita da cena, dividida aqui como em
muitas outras pinturas do período que a antecede, mostrando assim
várias cenas de uma mesma história acontecendo num mesmo espaço
pictórico. Na cena central temos Cristo, os apóstolos e o cobrador
de impostos. Ao fundo, à esquerda, Pedro retira a moeda da boca do
peixe, tendo o cuidado de retirar seu manto para executar a tarefa. E
próximo à construção, finalmente o tributo é pago por Pedro.
O
resgate dos ideais do helenismo são apresentados aqui também na
forma em que alguns personagens se apoiam sob uma das pernas,
principalmente na figura do cobrador de impostos no conhecido
contrapposto, criado pela graciosidade da arte grega e do qual
o Renascimento fará uso em larga escala, acentuando assim a forma
natural e casual de representação da forma humana sem a rigidez
estática e cristalizada da estética medieval que apresentava o
homem muitas vezes como um autômato.
Para
o belo rosto do apóstolo João, Masaccio pintará um jovem que
lembra mais a face de um deus Apolo, com traços nitidamente gregos e cabelos encaracolados que nos remetem incondicionalmente às
esculturas helênicas do Período Clássico.
Mas
é na anônima figura do cobrador de impostos ao centro que uma
revelação acontece. O ângulo sob o qual o artista pinta a mão
esquerda deste homem é de uma originalidade sem precedentes, assim
como o jogo de luz sobre o corpo e os pés, de uma sutileza admirável. E o contrapposto, em primeiro plano, aqui contraposto à figura do próprio Cristo, resgata todo um passado glorioso ao mesmo tempo que aponta um futuro não menos denso, pleno de vitórias e de conquistas!